Capítulo XXI
O almocreve
Vai então, empacou o jumento em
que eu vinha montado; fustiguei-o, ele deu dous corcovos, depois mais três,
enfim mais um, que me sacudiu fora da sela, e com tal desastre, que o pé
esquerdo me ficou preso no estribo; tento agarrar-me ao ventre do animal, mas
já então, espantado, disparou pela estrada afora. Digo mal: tentou disparar, e
efectivamente deu dous saltos, mas um almocreve, que ali estava, acudiu a tempo
de lhe pegar na rédea e detê-lo, não sem esforço nem perigo. Dominado o bruto,
desvencilhei-me do estribo e pus-me de pé.
-- Olhe do que vosmecê escapou,
disse o almocreve.
E era verdade; se o jumento corre
por ali fora, contundia-me deveras, e não sei se a morte não estaria no fim do
desastre; cabeça partida, uma congestão, qualquer transtorno cá dentro, lá se
me ia a ciência em flor. O almocreve salvara-me talvez a vida; era positivo; eu
sentia-o no sangue que me agitava o coração. Bom almocreve! enquanto eu tornava
à consciência de mim mesmo, ele cuidava de consertar os arreios do jumento, com
muito zelo e arte. Resolvi dar-lhe três moedas de ouro das cinco que trazia comigo;
não porque tal fosse o preço da minha vida, -- essa era inestimável; mas porque
era uma recompensa digna da dedicação com que ele me salvou. Está dito, dou-lhe
as três moedas.
-- Pronto, disse ele,
apresentando-me a rédea da cavalgadura.
-- Daqui a nada, respondi;
deixa-me, que ainda não estou em mim...
-- Ora qual!
-- Pois não é certo que ia
morrendo?
-- Se o jumento corre por aí
fora, é possível; mas, com a ajuda do Senhor, viu vosmecê que não aconteceu
nada.
Fui aos alforjes, tirei um colete
velho, em cujo bolso trazia as cinco moedas de ouro, e durante esse tempo
cogitei se não era excessiva a gratificação, se não bastavam duas moedas.
Talvez uma. Com efeito, uma moeda era bastante para lhe dar estremeções de
alegria. Examinei-lhe a roupa; era um pobre diabo, que nunca jamais vira uma
moeda de ouro. Portanto, uma moeda. Tirei-a, via-a reluzir à luz do sol; não a
viu o almocreve, porque eu tinha-lhe voltado as costas; mas suspeitou-o talvez,
entrou a falar ao jumento de um modo significativo; dava-lhe conselhos,
dizia-lhe que tomasse juízo, que o «senhor doutor» podia castigá-lo; um
monólogo paternal. Valha-me Deus! até ouvi estalar um beijo: era o almocreve
que lhe beijava a testa.
-- Olé! exclamei. -- Queira vosmecê perdoar, mas o
diabo do bicho está a olhar para a gente com tanta graça...
Ri-me, hesitei, meti-lhe na mão
um cruzado em prata, cavalguei o jumento, e segui a trote largo, um pouco
vexado, melhor direi um pouco incerto do efeito da pratinha. Mas a algumas
braças de distância, olhei para trás, o almocreve fazia-me grandes cortesias,
com evidentes mostras de contentamento. Adverti que devia ser assim mesmo; eu
pagara-lhe bem, pagara-lhe talvez demais. Meti os dedos no bolso do colete que
trazia no corpo e senti umas moedas de cobre; eram os vinténs que eu devera ter
dado ao almocreve, em lugar do cruzado em prata. Porque, enfim, ele não levou
em mira nenhuma recompensa ou virtude, cedeu a um impulso natural, ao
temperamento, aos hábitos do ofício; acresce que a circunstância de estar, não
mais adeante nem mais atrás, mas justamente no ponto do desastre, parecia
constituí-lo simples instrumento de Providência; e de um ou de outro modo, o
mérito do ato era positivamente nenhum. Fiquei desconsolado com esta reflexão,
chamei-me pródigo, lancei o cruzado à conta das minhas dissipações antigas;
tive (por que não direi tudo?), tive remorsos.
Joaquim Maria Machado
de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas
Joaquim Maria Machado de Assis,
cronista, contista, dramaturgo, jornalista, poeta, novelista, romancista,
crítico e ensaísta, nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 21 de junho de 1839 e faleceu no em 29 de setembro de 1908 na mesma cidade.
Filho de um operário mestiço de negro e português, Francisco José de Assis, e
de D. Maria Leopoldina Machado de Assis, aquele que viria a tornar-se o maior
escritor do país e um mestre da língua, perde a mãe muito cedo e é criado pela
madrasta, Maria Inês, também mulata, que se dedica ao menino e o matricula na
escola pública, única que frequentará o autodidata Machado de Assis.
Grande amigo do escritor paraense
José Veríssimo, que dirigia a Revista Brasileira, em sua redação promoviam
reuniões os intelectuais que se identificaram com a ideia de Lúcio de Mendonça
de criar uma Academia Brasileira de Letras. Machado desde o princípio apoiou a
ideia e compareceu às reuniões preparatórias e, no dia 28 de janeiro de 1897,
quando se instalou a Academia, foi eleito presidente da instituição, cargo que
ocupou até sua morte. Sua
oração fúnebre foi proferida pelo acadêmico Rui Barbosa.
É o fundador da cadeira nº. 23, e
escolheu o nome de José de Alencar, seu grande amigo, para ser seu patrono.
Por sua importância, a Academia
Brasileira de Letras passou a ser chamada de Casa de Machado de Assis.
Comédia
Desencantos, 1861.
Tu, só tu, puro amor, 1881.
Poesia
Crisálidas, 1864.
Falenas, 1870.
Americanas, 1875.
Poesias completas, 1901.
Romance
Ressurreição, 1872.
A mão e a luva, 1874.
Helena, 1876.
Iaiá Garcia, 1878.
Memórias Póstumas de Brás Cubas, 1881.
Quincas Borba, 1891.
Dom Casmurro, 1899.
Esaú Jacó, 1904.
Memorial de Aires, 1908.
Conto:
Contos Fluminenses,1870.
Histórias da meia-noite, 1873.
Papéis avulsos, 1882.
Histórias sem data, 1884.
Várias histórias, 1896.
Páginas recolhidas, 1899.
Relíquias de casa velha, 1906.
Teatro
Queda que as mulheres têm para os tolos, 1861
Desencantos, 1861
Hoje avental, amanhã luva, 1861.
O caminho da porta, 1862.
O protocolo, 1862.
Quase ministro, 1863.
Os deuses de casaca, 1865.
Tu, só tu, puro amor, 1881.
Algumas obras póstumas
Crítica, 1910.
Teatro coligido, 1910.
Outras relíquias, 1921.
Correspondência, 1932.
A semana, 1914/1937.
Páginas escolhidas, 1921.
Novas relíquias, 1932.
Crônicas, 1937.
Contos Fluminenses - 2º. volume, 1937.
Crítica literária, 1937.
Crítica teatral, 1937.
Histórias românticas, 1937.
Páginas esquecidas, 1939.
Casa velha, 1944.
Diálogos e reflexões de um relojoeiro, 1956.
Crônicas de Lélio, 1958.
Conto de escola, 2002.
Antologias
Obras completas (31 volumes), 1936.
Contos e crônicas, 1958.
Contos esparsos, 1966.
Contos: Uma Antologia (02 volumes), 1998
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